segunda-feira, 5 de junho de 2017

Matrioska - Uma coisa dentro da outra.


Se eu pudesse dar um conselho aos pais seria, ensine conceitos aos seus filhos, conceitos os mais básicos. Não estou falando de moral (somente), mas de todas as esferas da vida. No atendimento neuropsicológico de crianças com dificuldades de aprendizagem (não transtorno de aprendizagem, ok?!), muitas vezes percebo que o mundo é visto por eles de forma caótica, como um grande emaranhado de coisas sem nexo, sem ligação entre umas e outras, desta forma, a escola parece uma mera abstração desse caos.
Recentemente, durante uma das sessões, o garotinho letárgico, debruçado sobre a mesa resmungou “eu não gosto de estudar...” ao questiona-lo logo ele me repetiu o discurso que sempre dizemos para essas crianças “mas estudar é importante, somos obrigados, todo mundo é obrigado... até pra ser jogador de futebol”, ele está totalmente desmotivado com os estudos e já acha que “decidiu” sua carreira, será jogador de futebol, sabemos que no Brasil é uma mentira que um jogador de futebol precisaria estudar, sabemos que poderia perfeitamente ser analfabeto, inclusive, ele também sabe disso e finge acreditar na falácia de que mesmo jogadores precisam estudar. Contudo, sabemos que ser um jogador de sucesso é uma loteria, ele não sabe disso, acredita na inocência infantil que ainda cultiva, que tudo na sua gloriosa carreira de jogador será simples e fácil, tão natural e espontâneo quanto o nascer do dia.
Ao fazer algumas perguntas básicas para essa criança de 8 anos percebi que lhe faltam conceituações básicas para a compreensão do mundo. O interessante é que não só ele apresenta esta deficiência, mas grande parte das crianças que vêm aos consultórios com queixas de aprendizagem.
Perguntas como “Quais são as quatro estações do ano?”, recebem respostas como: do frio e do calor, ou março, outubro, fevereiro... “Quantos dias tem uma semana?” Respondem 30, 5... “O que tem em comum o Gelo e o Vapor?” uaii, nada... Questões como: “Porque os carros têm cintos de segurança?” Recebem respostas como: Para não levar multa.
Percebo então que lhes faltam conhecimentos básicos, mas, mais do que isso, lhes falta compreender as interações entre os conhecimentos sobre o mundo. Por exemplo, como uma criança compreenderá os dias da semana se não tiver noções do funcionamento do tempo? Como entenderá um calendário ou um relógio se não perceber o processo com que se inter-relacionam os segundos dentro dos minutos que estão dentro das horas que formam os dias, que por sua vez formam os meses e que formam os anos e que formam as décadas, os séculos, os milênios... O tempo, as estações do ano... Na escola ela tem de versar sobre os movimentos da terra e dos astros, do movimento de rotação e translação, sem ter dominado completamente esses conhecimentos básicos, que, por serem básicos, passam despercebidos, como se fosse natural adquiri-los por intuição.
O mundo é categorizado. Para entender o que são briófitas você tem que ter noção de que este conceito se relaciona com outros dos quais ele é dependente e está inserido dentro da botânica e o que é botânica? Para estudar os répteis tem de compreender que eles estão dentro do reino animal e se diferenciam ou se assemelham aos mamíferos por determinadas características próprias. Para compreender geografia terá de dominar a noção de que cidades formam estados que formam países e que estes formam continentes que formam a o planeta Terra que está dentro de um sistema solar.... Se ele não tiver a noção de que sua casa, seu setor, sua vila está relacionado diretamente com tudo isso, como irá encontrar consonância entre o que aprende na escola e sua vida? Como compreender prótons e nêutrons, átomos... sem compreender o que é matéria? De que são feitas as coisas? Como compreender o que é DNA, ou mitocôndria, sem saber de célula, onde ela está?
Aí, temos adultos, que compreenderam o básico de tudo e se formam, mas continuam vendo o mundo como “coisas separadas”, como se não existisse um elo de ligação entre os fatos e coisas. Quando minha filha me pergunta o que é um calendário, posso lhe explicar muito mais que simplesmente o óbvio. Quando ela começa a se interessar pela escrita, logo lhe expliquei que tudo que falamos pode ser transcrito, ensinei-lhe que palavras formam frases, que formam textos que formam livros inteiros. E que a unidade palavra que ela conheceu, pode por usa vez ser dividida em sílabas, que se dividem em “sons” (fonemas), que são representados por letras. Tenho certeza que isso a despertou o interesse por fazer parte desse grupo de pessoas que possuem o “poder” de transformar fala em escrita e que por sua vez decodifica essas letras em falas.

Quando falamos para eles coisinhas básicas, corriqueiras, do dia a dia... ao conversar sobre flores, animais, dias ou como nascem os bebês, nós organizamos o mundo para eles... quando não categorizamos e contextualizamos os conhecimentos para nossos filhos, eles têm de fazer isso sozinhos, pois muitos professores também não o farão. Por intuição muitos chegam a conclusões fantásticas, outros não. E aí recebo pais super ansiosos, alguns até nervosos, pois “pagam” para que o filho aprenda... porém, algumas coisas nós mesmos podemos ensinar na mesa do lanche, no passeio do parque, na preguiça de um domingo.